Infelizmente, quase toda a gente conhece mulheres que são física ou emocionalmente abusadas pelos respectivos companheiros. Desde a vizinha que se queixa de levar uns tabefes quando o marido bebe demais, até à rapariga jeitosa e inteligente que ninguém percebe por que é que não se separa do namorado que a insulta à frente de todos. Aos olhos de familiares e amigos, bater com a porta é o único caminho que faz sentido, mas também o mais fácil. Quem trabalha em contexto clínico com estas mulheres sabe bem que quando se fala numa ruptura com um companheiro agressor não se trata de uma decisão simples, mas antes de um processo complexo, que envolve muito mais do que a assunção de que a segurança está posta em causa.
Os anos de abuso físico e/ou emocional afectam a percepção destas mulheres acerca dos limites, o que as leva a hesitar muitas vezes entre a ruptura e a manutenção da relação. Às vezes experimentam sair de casa, mas sentem-se emocionalmente ligadas ao companheiro, vêem-no como parte do seu projecto familiar, como o pai dos seus filhos, e a vontade de voltar a ver a família unida fá-las regressar. Noutros casos, mantêm-se em casa, mas sentem-se emocionalmente distantes do cônjuge.
Nestes processos, marcados por grande ambivalência, é possível identificar diferentes fases. No princípio, a mulher reconhece que o companheiro não é carinhoso, nem se preocupa (como deveria) com o seu bem-estar, ou com a estabilidade emocional das crianças envolvidas, mas sente-se ainda emocionalmente ligada ao seu casamento. Numa segunda fase a mulher começa a sentir-se emocionalmente desligada da sua relação – nesta altura é possível ouvi-la queixar-se, ou até a manifestar algum desprezo pelo companheiro dizendo coisas como “Deixei de me preocupar com ele” ou “Já não quero saber”. Numa terceira fase, normalmente marcada por abusos frequentes que podem estender-se às crianças, a mulher começa a considerar a hipótese de deixar o marido. Pode até implementar alguns esforços no sentido de procurar um sítio onde possa ficar, ou colocar algum dinheiro de parte. Só numa quarta fase passa verdadeiramente à acção, com a tentativa de sair de casa. Mas, mesmo aí, o processo pode ser marcado por avanços e recuos. Por maior que seja a mágoa, as emoções não deixam de estar envoltas em dúvidas e, não raras vezes, para desespero das pessoas que se preocupam com o seu bem-estar, a mulher manifesta vontade de voltar a relacionar-se com o agressor. A quinta fase, chamada de manutenção da decisão, implica que a mulher esteja há pelo menos 6 meses afastada do agressor. Ainda assim, e em função das investidas do ex-marido, muitas vezes ocorridas aquando das visitas aos filhos, a ambivalência pode prolongar-se durante muito tempo.
Ainda que para quem está de fora a segurança e a estabilidade constituam valores imprescindíveis, capazes de suplantar qualquer esboço de amor que ligue estas mulheres aos seus agressores, a verdade é que o arrastamento do processo de ruptura é realmente complexo. O agressor pode tomar decisões, fazer ameaças ou tentativas de manipulação usando os filhos como joguetes e condicionando as resoluções da mulher. Todos sabemos que, em nome do suposto bem-estar das crianças, muitas mulheres são capazes de (quase) tudo.