Quando ouvimos falar em histórias de abusos físicos e sexuais, notícias de violência extrema sobre crianças ou casos de incesto sentimo-nos chocados, revoltados e empatizamos imediatamente com o sofrimento das vítimas. Imaginamos que terão um futuro complicado ainda que nos seja muito difícil discernir sobre o real impacto dos abusos, nomeadamente na vida adulta. Quantas pessoas conhece que tenham sido vítimas de uma destas formas de violência? Provavelmente, nenhuma – até porque estas são questões embaraçosas, que a maior parte das vítimas guarda para si, aumentando o sofrimento, a solidão e o desamparo.
Das pessoas com quem tenho trabalhado em terapia, são raros os casos em que houve algum tipo de partilha. De um modo geral, estas pessoas nunca falaram sobre os episódios traumáticos com ninguém, nem sequer com o cônjuge. Nalguns casos, a partilha até existe, mas de forma parcial. Por exemplo, uma paciente foi capaz de revelar ao marido que tinha sido vítima de abusos sexuais, mas ocultou o facto de o seu abusador ser o próprio pai.
A gravidade dos acontecimentos, a tenra idade em que acontecem e, sobretudo, os mecanismos de defesa que permitem que a criança sobreviva ao ambiente violento podem dar origem ao apagamento de algumas memórias, pelo que não raras vezes é já na idade adulta que estas pessoas são confrontadas com sintomas que permitem o apuramento dos factos. São frequentes os relatos de vítimas que, de repente, têm flashbacks do que aconteceu décadas antes – são uma espécie de “visões” que se vão intensificando e que dão origem à reconstrução dos abusos. Na maior parte das vezes estas recordações surgem acompanhadas de explosões de raiva seguidas da necessidade de isolamento e tristeza profunda. Em suma, há uma montanha russa de emoções que nem o próprio nem a família mais próxima são capazes de compreender ou gerir. De resto, muitos casamentos entram em crise porque o cônjuge da vítima se sente injustiçado pelos episódios de agressividade. A incompreensão e a sensação de impotência são de tal modo devastadoras que o pedido de ajuda pode surgir sob a forma de terapia de casal.
Ainda que muitas vezes a vítima tenha vontade de voltar a apagar estes acontecimentos para que possa, assim, escapar à dura realidade, esse não é o caminho. As recordações e as explosões de agressividade são indicadores da presença da perturbação pós stress traumático, tão frequente em sobreviventes destas formas de violência.
O grande problema é que estas vítimas sentem-se frequentemente culpadas pelo que aconteceu. Por mais estranho que pareça, convencem-se de que, de alguma forma, podem ter contribuído para o que aconteceu, desresponsabilizando tantas vezes o real agressor. Claro que estes pensamentos são completamente irracionais e precisam de ser trabalhados em terapia.
É essencial que a vítima possa ser acompanhada quer em termos psiquiátricos, com recurso à medicação, quer em psicoterapia. Não vale a pena tentar esquecer aquela criança assustada que se escondia debaixo da cama ou que fingia estar a dormir para escapar aos abusos. É preciso reconhecer a existência desta criança, aceitá-la, dar-lhe colo, confortá-la, ajudá-la a ultrapassar as suas feridas.