Anorécticas. Foi assim que nos habituámos a
rotular as vítimas de anorexia nervosa. Reportagens, notícias, palestras e
estudos de caso têm-nos dado conta de inúmeras histórias, quase sempre
dramáticas, de (jovens) mulheres que lutam, lutaram ou morreram por causa desta
perturbação do comportamento alimentar. Para a população em geral, tal como
para a maior parte dos clínicos, não faz
muito sentido falar em homens anorécticos. Habituámo-nos à raridade de
casos concretos e partimos vezes de mais do princípio de que um potencial
doente mascara outra dificuldade qualquer. Lembro-me, por exemplo, de um caso
que acompanhei logo no início da minha actividade e cujo pedido de ajuda era
claro: "O meu filho sofre de anorexia nervosa". Na altura trabalhava
em co-terapia e lembro-me de ter ficado tão expectante quanto o meu
co-terapeuta em relação à primeira consulta com esta família. Não foram
precisas mais do que duas consultas para que o pedido de ajuda fosse
reestruturado e, de um acompanhamento à criança passássemos a um processo
terapêutico individual com... a mãe. Estávamos perante uma criança com algumas
dificuldades de alimentação, sim, mas nada que configurasse uma perturbação do
comportamento alimentar. Esta foi apenas a porta de acesso a um pedido de ajuda
que há muito urgia e que se prendia com dificuldades de natureza conjugal. Esta
mulher precisava de ajuda mas projectara as suas dificuldades para o filho.
De lá para cá tive oportunidade de me cruzar com vários colegas
que confirmam a raridade da prevalência de pedidos de ajuda no masculino no que
às perturbações do comportamento alimentar diz respeito. Paralelamente, tenho
acompanhado os estudos científicos estrangeiros que dão conta da maior
incidência da anorexia nervosa nas mulheres, mas que também revelam que a
prevalência entre os homens é significativamente superior àquilo com que nos
confrontamos nos gabinetes de Psicoterapia.
Estudos recentes dão conta de que 25 por cento das vítimas de
anorexia são homens (e 40 por cento das vítimas de voracidade alimentar também
são homens).
Então, por que é tão difícil identificar estes casos?
As razões são de diversa ordem:
- A doença tem sido comummente associada às mulheres, pelo que
mesmo quando nos apercebemos de que um homem está com peso a menos atribuímos a
circunstância a outros factores, como o stress.
- Se é verdade que boa parte dos doentes com perturbações do
comportamento alimentar exageram na prática de exercício físico, é muito raro
ouvirmos alguém sugerir que um homem passa demasiado tempo no ginásio. Nos
tempos que correm isso é sobretudo sinal de saúde, de vaidade e de cuidado com
o corpo. Mais facilmente pensamos que um homem que passa muito tempo no ginásio
pretende ganhar músculos do que perder peso.
- Como a doença está mediaticamente associada às mulheres, os
homens que dela padecem dificilmente reconhecem o problema, ainda que sofram
com os constrangimentos que esta perturbação vai criando.
- Quando os doentes atingem um grau de debilidade física que
obrigue ao internamento e/ou à baixa médica o diagnóstico aponta muitas vezes
para o "burnout" ou
esgotamento, o que implica que a pessoa passe a receber medicação
antidepressiva, que produz alguns resultados em termos do alívio dos sintomas
mas que pode mascarar o real problema.
Tal como acontece em relação a tantas outras perturbações do foro
emocional, existem muitos doentes de anorexia nervosa subdiagnosticados e que
levam anos até que se confrontem com um diagnóstico rigoroso e com o respectivo
plano terapêutico.