O título do post pode parecer paradoxal na medida em que depois de
casar ninguém volta a adquirir o estado civil de solteiro. Mas ainda que todos
saibamos que uma ruptura dá origem ao estado de divorciado, o rótulo é apropriado
para descrever os inúmeros casos que chegam ao meu gabinete em que um dos
membros do casal mostra comportamentos ambivalentes – ora demonstra vontade de
manter o casamento ou o compromisso actual, ora assume escolhas que seriam mais
compatíveis com a vida descomprometida de uma pessoa solteira. Na maioria
destes pedidos de ajuda há um membro do casal que se queixa dos comportamentos
inapropriados do outro. Mesmo que não haja suspeitas de infidelidade (e muitas
vezes há), é usual existir um imenso desconforto associado às mudanças de
comportamento do cônjuge – “É como se
ele(a) quisesse ser outra pessoa”, “Acho que estes comportamentos seriam
aceitáveis numa pessoa solteira” ou “Ele(a) anda estranho(a). Mudou tanto…”
são algumas das queixas mais comuns.
Na prática, a pessoa que se queixa sente-se insegura face às
mudanças do outro, como se o compromisso firmado há anos estivesse a
escapar-lhe por entre os dedos. E perante esta insegurança, o desespero cresce e a probabilidade de
surgirem comportamentos “à detective” também. A escalada evolui de tal modo
que, quando o casal chega ao meu gabinete, está muitas vezes enredado numa
espécie de ciclo vicioso em que ambos se queixam e nenhum assume de forma clara
aquilo que sente. E é de sentimentos que falamos (ou da sua inexistência)
quando falamos da aparente vontade de voltar a ser solteiro.
Quando um homem ou uma mulher decide romper com as rotinas e as
regras do seu relacionamento, assumindo que tem vontade de viver experiências
novas, conhecer outras pessoas ou estar mais tempo sozinho (sem o cônjuge), é
natural que o outro se sinta alarmado.
Afinal, todas as relações evoluem mas, de um modo geral, as
mudanças ocorrem de forma gradual e não abrupta. Se um dos dois está repentinamente
cansado do que existe e com vontade de impor mudanças que para o outro são
assustadoras, isso pode querer dizer que os sentimentos evoluíram, pelo que as
necessidades afectivas são outras. Como existe uma identidade associada aos
anos de vida em comum – e, na maior parte dos casos, associada à existência de
filhos – o desaparecimento do amor romântico pode vir acompanhado de sentimentos de culpa e depressão. É
precisamente porque é difícil largar um relacionamento longo que tantas pessoas
vivem aprisionadas a uma relação que já não as satisfaz e acabam por magoar a
família com as suas escolhas. Em teoria, aquilo de que se queixam é legítimo: sentem falta de alguma adrenalina, querem
sair da monotonia, querem sentir-se livres.
Na realidade, as escolhas que
um quer impor ao outro são bem mais complexas. Porque as novas amizades são
mantidas à distância do cônjuge, porque a fronteira entre brincadeiras
inofensivas e o flirt é difícil de traçar, porque a necessidade recente de
liberdade de um choca com a necessidade de segurança do outro.
Não interessa fazer juízos de valor sobre estas escolhas. É
verdade que, em certos casos, estamos a falar de comportamentos que não
dignificam quem os pratica e que magoam o cônjuge e os filhos (como a mentira
ou a traição). Mas em terapia o que importa é ajudar os dois membros do casal a
discernir sobre aquilo que sentem. É fundamental olhar para trás, identificar
eventuais erros e perspectivar mudanças que permitam reestruturar a relação –
mas isso só é possível se ainda existir amor romântico.
Nenhum casamento subsiste à conta de sentimentos de culpa e pena.
Estes só servem para adiar o inevitável – a assunção de que o amor
acabou e de que é preciso tomar decisões. Fingir que está tudo bem ignorando os
sinais de alarme (que neste caso adoptam a forma de rebeldia tardia) não deve
ser opção, em particular quando há filhos.