O António tem pouco mais de 12 anos e é amplamente elogiado pela vizinhança. Gabam-lhe os dotes culinários, o sentido de responsabilidade e a forma carinhosa como cuida dos dois irmãos mais novos. O pai é conhecido pela dependência do álcool e a mãe está demasiado ocupada a tentar trazer algum dinheiro para casa, pelo que o António assumiu muito cedo a responsabilidade de cuidar da família. Aos olhos dos vizinhos, é um miúdo exemplar, que tomou as rédeas da casa na altura devida. Tendo consciência das dificuldades por que a mãe passa, jamais se atreveria a pedir um brinquedo ou outra coisa qualquer para si. Pelo contrário, é ele que está alerta para que as contas da água, da luz ou do gás sejam pagas a tempo de evitar o corte. Não se lhe conhece uma birra.
Há crianças que assumem o papel
de pais dos seus pais e/ou de pais dos irmãos mais novos. E ainda que a sua
maturidade e o seu sentido de responsabilidade sejam normalmente muito
apreciados por quem está à sua volta, a verdade é que não há nada de saudável numa família em que as crianças deixam de ser
crianças.
Infelizmente há demasiadas
crianças que sentiram desde cedo a necessidade de assumir responsabilidades,
preenchendo assim o vazio deixado pelos progenitores. E se é fácil perceber que
este mecanismo de defesa apareça nas famílias marcadas pelo alcoolismo ou pelo
consumo de substâncias, a verdade é que esta "maturidade à força"
existe noutras famílias.
A assunção das responsabilidades
que deveriam ser dos adultos pode surgir na sequência de um processo de
divórcio, em particular se se tratar de um divórcio destrutivo, marcado por
braços-de-ferro entre adultos que se mostram incapazes de colocar os interesses
das crianças em primeiro lugar. Mas também pode resultar da ausência de
fronteiras entre pais filhos evidenciada, por exemplo, pelo facto de os adultos
confiarem aos filhos menores preocupações relacionadas com a sua vida afetiva/
sexual ou com a gestão financeira.
Há uma diferença abismal entre
educar as crianças no sentido de estas perceberem que os recursos dos pais são
limitados e a partilha detalhada de todas as dificuldades. Assim como há uma
fronteira muito nítida entre a perceção, por parte dos filhos, de que os pais
discutem (às vezes de forma séria) e o acesso à sua intimidade.
OS FILHOS NÃO PODEM SER
OS CONFIDENTES DOS PAIS.
Esse é um fardo demasiado pesado,
a que nenhuma criança ou adolescente deveria ser exposta(o).
Quando um filho cresce sem a
possibilidade de ser verdadeiramente criança, há uma tristeza e uma solidão que
podem deixar marcas muito profundas. E ainda que numa primeira fase não haja
sinais claros desse desamparo (pelo menos aos olhos de quem convive de perto
com a criança), há uma probabilidade muito elevada de a vida afetiva do
entretanto adulto ser condicionada por estas feridas emocionais.
Não raras vezes, quando estes
filhos se tornam pais acabam por também eles responsabilizar as suas crianças
de forma precoce, impossibilitando-as de serem crianças em pleno e ignorando os
riscos associados. Mais: as relações amorosas que constroem são muitas vezes
reproduções deste padrão relacional, isto é, a pessoa acaba por comportar-se
como pai/ mãe do parceiro. A preocupação e o medo são constantes, assim como a
necessidade de cuidar sem reivindicar colo/ mimo/ cuidados.
Noutros casos é precisamente a
partir do momento em que estas crianças chegam à idade adulta e têm
oportunidade de construir relações afetivas equilibradas que dão conta da
violência a que foram expostas e do estado depressivo em que tantas vezes se
encontram.
Os filhos precisam de se sentir
seguros, protegidos, e não de assumir o papel de homenzinho ou mulherzinha da
casa. Infelizmente, estas são precisamente as expressões que os pais tantas
vezes utilizam – “Agora tens de ser o
homenzinho/ mulherzinha da casa” – ignorando os danos que provocam às suas
crianças.