«És demasiado sensível. Não tens
sentido de humor». Foram tantas as vezes que Anabela ouviu aquelas frases que,
a partir de certa altura, passou a acreditar neste e em todos os rótulos que o
marido lhe foi atribuindo. Foi preciso muito tempo para perceber que as piadas que João fazia junto de
familiares e amigos, inferiorizando-a, também eram uma forma de violência
emocional. Apesar de sofrer com os comentários, habituou-se a desvalorizar os
seus sentimentos. Afinal, era a pessoa que amava que lhe dizia que ela era “demasiado
sensível”.
…
- Estás chateada com o quê?
- Hã? Eu não estou chateada.
- Podes não reparar, mas sempre
que vens do curso novo que estás a fazer pareces outra. Andas mais sisuda, mais
rabugenta.
- Mas eu nem disse nada…
- Estás a ver? Já estás a arranjar
discussão. Não se pode falar contigo.
Rita não se deu conta de que,
enquanto o marido definia os seus sentimentos, dizendo-lhe que estava zangada,
estava na verdade a sabotar uma
atividade de que ela gostava e que o fazia sentir-se ameaçado. Ninguém está
permanentemente atento à própria expressão facial e, quando a pessoa de quem
gostamos nos diz que estamos com ar cansado ou zangado, acreditamos. A última
coisa em que pensamos é que aquilo possa ser uma forma de abuso.
…
«Se tu gostasses MESMO de mim,
não me obrigavas a ir a esse jantar. A tua mãe está sempre a falar dela mesma e
o teu pai não perde uma oportunidade para se queixar disto e daquilo. Numa
relação é importante fazer cedências e prestar atenção ao que a pessoa de quem
gostamos sente. Tu não te preocupas comigo?». Claro que Rute se preocupa com o
marido. E é óbvio que Vasco sabe disso. Por que faz chantagem emocional? Porque é que
não diz qualquer coisa como «Eu sei que era importante para ti que eu
fosse mas hoje sinto me cansado, impaciente. Não te importas que eu fique?».
Porque para si é mais gratificante exercer poder sobre a mulher, definir os
sentimentos dela («se tu gostasses mesmo de mim…»), forçá-la a fazer uma
escolha diferente daquela que gostaria, potenciar sentimentos de culpa e
colocar-se numa posição de superioridade, capaz de identificar os
comportamentos certos e errados de uma boa relação.
…
«Como é que tu achas que os
nossos filhos vão olhar para ti? Vão acusar-te de egoísmo e malvadez. Não se
desiste assim de uma família. Não se tira a estabilidade emocional a duas
crianças nem se termina um amor de vinte anos só por causa de meia dúzia de
discussões. Pergunta a quem quiseres. Até os teus pais vão ficar em choque.
Eles sabem que eu te adoro.».
Nuno sabia aquilo que estava a
dizer. Sabia que ao definir a
personalidade da mulher e ameaça-la com
os juízos de valor dos filhos estava a tocar no seu maior medo. Ainda que a
mulher e os filhos tenham sido vítimas continuadas das suas explosões, das suas
críticas e da sua chantagem emocional, Nuno deu o seu melhor para manter uma
imagem de pai de família imaculado. Sabia que toda a gente à sua volta o via
como uma pessoa simpática, generosa e altruísta. É assim que muitos abusadores
se comportam fora de casa.
…
Quando Luís entrou na sala de
cinema com a mulher, sabia que viriam dias difíceis. Tinha acabado de ser
simpático com a funcionária que lhe vendeu as pipocas, sorrindo perante uma
brincadeira. Ana, a mulher, não gostou e, à entrada para o cinema disse apenas
«És ridículo». Seguiram-se dois dias de “tratamento
do silêncio”. Luís estava habituado a esta forma de violência embora não
tivesse consciência de que era disso que se tratava. Sabia que se contrariasse
as expectativas da mulher poderia estar horas, dias ou semanas sem receber
qualquer gesto de carinho. Sofria com isso mas estava longe de perceber que os
comportamentos abusivos estavam a destruir a sua autoestima.
…
«Não vales nada.». É curioso como
a frase, repetida até à exaustão, deixou de escandalizar Diana. Era ela que trabalhava
fora de casa, era ela que brilhava no mundo corporativo e era ela que
sustentava a família. Fernando estava desempregado há muito tempo e Diana
habituou-se a atribuir as humilhações
à diminuição da autoestima do marido. Durante muito tempo não percebeu que
aquela era só mais uma forma de controlo, mais uma forma de o marido se superiorizar
e, em função disso, mantê-la sob as suas ordens.
…
A violência emocional pode
assumir muitas formas. Pode ser feita em voz baixa, quase doce, confundindo a
vítima. Pode incluir gritos, insultos e explosões. Mas também pedidos de
desculpas que parecem uma nova lua-de-mel. Muitas vezes é praticada por alguém que
publicamente tem uma imagem imaculada e que, em privado, vai aprimorando
técnicas para exercer o seu poder sobre a pessoa que alegadamente ama. Normalmente
não há um plano maquiavélico. Aquilo que existe é uma espécie de filme,
imaginado por si, e uma vítima que, na sua cabeça, deveria comportar-se sempre
de acordo com as suas expectativas. É como se houvesse um guião e a pessoa amada
fosse uma personagem. Quando a personagem ganha vida e revela vontades,
sentimentos ou interesses próprios, surgem comportamentos abusivos.