Começa quase sempre com muito entusiasmo: duas pessoas sentem-se sexualmente atraídas e, pelo menos para uma delas, não há vontade de assumir todas as obrigações de um relacionamento sério. Uma amizade colorida parece o formato perfeito: não há chatices, não há cobranças, as pessoas estão juntas quando querem e com prazer. Quando é que uma amizade colorida deixa de servir? E porque é que não serve para toda a gente?
Ana terminou um casamento de mais de dez anos e, quando achava que iria passar alguns anos sem que pudesse interessar-se por outro homem, conheceu David, um homem atraente, divorciado, por quem sentiu uma «química à primeira vista». Envolveram-se sexualmente e, logo no primeiro encontro, David procurou ser claro e honesto com Ana: não estava interessado num namoro e a única forma de continuarem a estar juntos seria assim, sem compromissos, sem obrigações. Ana gostou da sinceridade e acedeu. Não se sentiu pressionada nem desrespeitada. Pelo contrário, estava a adorar a adrenalina destes encontros. «Tenho o melhor sexo da minha vida e, para já, acho que este formato é perfeito para nós. Não tenho vontade de apresentar um namorado aos meus pais ou ao meu filho.», disse-me um dia. Chamei a sua atenção para aquelas palavras. Aquele «Para já» pareceu-me sincero mas eu conheço demasiadas histórias de mulheres que, mais cedo ou mais tarde, saíram feridas de uma amizade colorida. Propus-lhe que assumisse o compromisso de continuar a respeitar os seus sentimentos, verbalizando-os a David e procurando fazer as escolhas que permitissem que as suas necessidades afetivas continuassem a ser reconhecidas.
Infelizmente, não me enganei. Passou muito pouco tempo até que Ana assumisse: «Acho que estou apaixonada» e, ainda que não tivesse a coragem para o dizer a David, o mais provável é que o seu comportamento não-verbal a tivesse denunciado. «O David está constantemente a lembrar-me que não quer namorar comigo. Às vezes até lhe digo, na brincadeira, que eu também não quero namorar com ele e que esta conversa é um bocado cansativa mas ele insiste porque, diz, não quer que eu me magoe».
Na prática, aquela relação assumiu muitos hábitos de um namoro: Ana e David trocavam mensagens quase todos os dias, falavam sobre os problemas e as vitórias de cada um, estavam juntos todas as semanas e chegaram a fazer alguns programas que incluíam o filho de Ana.
É quase sempre assim – pelo menos entre as situações que chegam até ao meu consultório:
Ana ouviu David dizer inúmeras vezes que não estava apaixonado por ela mas também o ouviu dizer que ainda estava muito abalado pelo fim do seu casamento e alimentou a esperança de que, com o tempo, a ferida sarasse «e ele se entregasse».
Prometeram que, se se interessassem por outras pessoas, deixariam de se encontrar e ficariam amigos MAS a verdade é que, quando Ana menos esperava, David anunciou que tinha namorada. «Como assim, uma namorada? Quando é que isso aconteceu? Quando é que ele a conheceu? Quantas vezes saíram juntos antes de oficializarem a relação? Então e os sentimentos que existiam em relação ao casamento? Ficou tudo resolvido, de repente?».
Ana sentiu-se traída e “cobrou” explicações. David assumiu que não conseguiu ser totalmente sincero e que tinha chegado a sair com as duas mulheres durante algum tempo mas reforçou que se esforçou sempre por esclarecer que não estava envolvido do ponto de vista emocional e que tinha pedido a Ana para ser sincera e para que não se magoasse.
O QUE É UMA AMIZADE COLORIDA?
Antes de mais, importa esclarecer que aquilo que caracteriza uma relação, incluindo as “regras” que fazem parte dela, é da responsabilidade dos intervenientes, isto é, das pessoas envolvidas. É fácil olhar para um namoro ou para um casamento e assumir que as relações são todas iguais mas a verdade é que muitas vezes aquilo que funciona para um casal não funciona para os outros.
Talvez seja mais fácil dizer que uma amizade colorida NÃO É um namoro. Essa é a distinção que, na maioria das vezes, pelo menos uma das pessoas procura fazer de forma clara.
Na prática algumas vezes há encontros regulares, há monogamia e até algumas cobranças mas a pessoa que propôs este formato facilmente se resguarda de qualquer exigência que venha do outro lado com a lembrança de que aquela relação NÃO É um namoro.
Como há envolvimento físico e, na maioria das vezes, não há conhecimento de que existam outras pessoas envolvidas, é muito comum que uma das pessoas – normalmente a mulher – se envolva também do ponto de vista emocional e que vá alimentando a expectativa de que a relação “evolua” para um compromisso mais sério.
QUAL A PRINCIPAL DIFERENÇA ENTRE AMIZADE TRADICIONAL E AMIZADE COLORIDA?
Numa amizade “tradicional” não há envolvimento romântico, não há sexo e os limites estão definidos de forma clara. De uma maneira geral, na amizade é possível saber com o que é que podemos contar. Sabemos exatamente o que a outra pessoa tem para nos oferecer e, ainda que tenhamos sentimentos românticos por um amigo, o comportamento do outro lado é coerente esclarecedor. Numa amizade colorida é mais fácil que ocorram equívocos e, também por isso, é tão frequente que, apesar de todos os esforços para que a relação seja pautada pela honestidade, haja frustração e confusão.
HÁ BENEFÍCIOS NUMA AMIZADE COLORIDA?
Nem todas as pessoas se sentem confortáveis numa relação de compromisso que, como o nome indica, implica um conjunto de obrigações. A amizade colorida tem a grande vantagem de, em teoria, cada um ser livre para fazer as escolhas que entender sem que haja lugar para cobranças. Na prática, isto só funciona para uma pequena minoria e a título transitório.
E MALEFÍCIOS?
Há dois tipos de situações que chegam até ao meu consultório. Um está relacionado com situações de desonestidade, em que uma das pessoas impõe o formato da amizade colorida sobretudo para que ela própria não tenha quaisquer obrigações mas, à medida que se vai confrontando com o envolvimento emocional da outra pessoa e com a iminência de uma rutura, vai alimentando de forma indireta as expectativas de que a relação possa evoluir para algo mais sério. Normalmente nestes casos a pessoa não é assertiva e usa desculpas como «Magoei-me muito noutras relações» ou «Ainda não me sinto preparado(a) para outra relação», consciente de que está a manipular a realidade com o objetivo de continuar a usufruir dos benefícios que aquela relação lhe oferece.
O outro tipo de queixas está relacionado com uma postura mais clara e honesta, pelo menos do ponto de vista verbal mas em que a pessoa não é capaz de fazer a escolha de se afastar de uma relação que está a fazer-lhe mal. Isto é, uma das partes assume de forma clara que não está interessada num compromisso mas continua disponível para os encontros e, desta intimidade física, resulta o crescente envolvimento emocional da outra parte.
O círculo vicioso tende a agudizar-se já que, à medida que o tempo vai passando, a pessoa que está a sofrer alimenta pensamentos negativos associados ao facto de estar a sujeitar-se a menos do que merece.
EXISTEM REGRAS DENTRO DE UMA AMIZADE COLORIDA?
Como referi antes, as regras são definidas pelas pessoas envolvidas. Infelizmente, muitas vezes só uma das pessoas é capaz de dar voz aos próprios sentimentos e necessidades afetivas e a outra acaba por anular-se. Daí que, na prática, haja tantas situações em que as regras da amizade colorida satisfaçam apenas uma das pessoas e sejam geradoras de sofrimento e diminuição da autoestima da outra pessoa.
Claro que as situações que chegam até ao meu consultório são os casos que correram mal (senão as pessoas não precisariam da minha ajuda) e há obviamente amizades coloridas com maior ou menor envolvimento emocional em que ninguém sai magoado. É possível que duas pessoas se envolvam durante algum tempo conscientes de que aquela relação não é um namoro e capazes de dar voz àquilo de que precisam. Contudo, pelo meu gabinete já passaram muitas como a de Ana. Quanto maior for a nossa capacidade para prestarmos atenção aos nossos sentimentos e àquilo de que precisamos para sermos felizes, e quanto mais nos comprometermos em dar voz a estas necessidades, maior a probabilidade de fazermos escolhas que nos permitam viver aquilo que merecemos (em vez de nos contentarmos com menos).