Assim que surgiram as primeiras notícias sobre a necessidade de ficarmos de quarentena, apareceram muitas piadas sobre o que aconteceria aos casamentos. Alguns vaticinaram um baby boom, enquanto outros profetizaram um aumento exponencial do número de divórcios. Que impacto pode ter o isolamento social nas relações amorosas?
Há muitos anos que os psicólogos
e os advogados sabem que os períodos pós-férias são sinónimo de aumento do
número de separações. O Natal e as férias de verão são duas alturas do ano em
que as famílias acabam por passar mais tempo juntas e, para muitas, isso é
sinónimo de muita tensão e algumas revelações. Por exemplo, há muitas relações
extraconjugais que são descobertas nestes períodos – os casais estão mais tempo
juntos, prestam mais atenção a alguns detalhes. Mas não é só: no dia-a-dia,
acabamos por estar muito ocupados com todos os compromissos sociais,
profissionais e familiares. Quando paramos, as expectativas são altas e a
realidade nem sempre corresponde ao que idealizámos. Nalguns casos, essas
paragens dão lugar à constatação de que os sentimentos românticos
desapareceram. Noutros casos, os sentimentos estão lá, mas há muita tensão e é
preciso pedir ajuda.
O que acontecerá às relações amorosas no período de quarentena?
As respostas concretas a esta
pergunta só poderão ser dadas com exatidão daqui a alguns meses, mas é possível
antecipar alguns cenários e fazer escolhas mais conscientes.
Sabemos que qualquer evento
stressante tanto pode unir como pode separar um casal. Pelo meu consultório
passam muitos casais que se referem a acontecimentos difíceis que foram
autênticas fontes de conexão emocional. Quando duas pessoas se unem contra uma
ameaça comum, o sentimento de pertença aumenta. Infelizmente, isto nem sempre
acontece e, nalguns casos, a desunião está relacionada precisamente com a forma
como cada um encara a ameaça.
Por exemplo, nos dias de hoje algumas
pessoas tenderão a sentir-se mais seguras e otimistas se dosearem o acesso às
notícias, enquanto outras preferirão manter-se atualizadas “ao minuto”. É muito
fácil haver muita tensão entre os membros do casal na medida em que um
considere que o outro está a exagerar ou a desvalorizar o problema e,
sobretudo, se esses juízos de valor forem manifestados sob a forma de críticas
duras.
Nos últimos dias tenho ouvido
alguns casais que me descreveram discussões acesas a propósito da forma como
cada um tem lidado com as saídas de casa. Para algumas pessoas, as
preocupações profissionais – que vão desde o medo de perder o emprego até à
vontade de ajudar os membros da equipa – impedem que o trabalho seja feito a
partir de casa. Se do outro lado estiver alguém muito ansioso, isso é meio
caminho para que haja uma discussão acesa, recheada de acusações.
A Pandemia tem efeito na líbido?
Todos nós já vimos alguns memes
sobre um possível baby boom depois da quarentena, mas a verdade é que uma
das consequências desta pandemia é a subida dos níveis de ansiedade e isso pode
fazer diminuir o desejo sexual. Por outro lado, há pessoas que me dizem que não
se sentem particularmente stressadas, mas que simplesmente não têm muita
vontade de ter sexo. Essa falta de vontade é muitas vezes sentida como uma
forma de rejeição. Se a comunicação não for clara, é fácil haver um
distanciamento cada vez maior.
Um dado curioso relacionado com aquilo
que temos vivido nas últimas semanas pode ajudar-nos a perceber de que forma é
que a nossa sexualidade está a ser impactada pelo isolamento provocado pelo
covid-19: no mês de março houve um aumento significativo no acesso a sites
de pornografia. Se pensarmos que estes sites são maioritariamente visitados
por homens, é fácil calcular que possa começar a haver o tal distanciamento.
Tal como tenho explicado noutros
textos, o desejo sexual não depende apenas de quão atraente é a pessoa que
amamos.
Por outro lado, para a esmagadora
maioria das pessoas, o desejo é maior na medida em que haja alguma dose de
mistério, novidade e sedução. É como se nos sentíssemos mais atraídos por
alguém na medida em que tenhamos a consciência de que aquela pessoa não é
verdadeiramente nossa nem está sempre disponível. Ora, essa “distância de
segurança” é mais difícil de existir quando ambos estão dentro de casa 24 horas
por dia.
Como é que se mantém um casamento no meio de tanta incerteza?
Se olharmos para a história
recente, vamos dar-nos conta de que as catástrofes – naturais ou não – não são sempre
um trampolim para o divórcio. Pelo contrário, há casais que não só sobreviveram
a grandes crises, como conseguiram que a sua relação saísse ainda mais
fortalecida. Que competências têm esses casais? Que escolhas fizeram?
Empatia, altruísmo, compaixão
A ciência tem-nos mostrado que os
casais mais felizes são genuinamente altruístas. Isso implica que cada um preste
atenção aos sentimentos do outro, valorizando-os na medida certa. Não implica
que estejam sistematicamente de acordo. Por exemplo, no caso que descrevi
antes, o que é importante não é que os membros do casal estejam de acordo em
relação ao teletrabalho ou ao trabalho fora de casa. Na verdade, todos os
casais vão divergir sobre assuntos importantes – dentro ou fora da quarentena.
Aquilo que importa é que cada um seja capaz de falar abertamente sobre aquilo
que SENTE a propósito de qualquer assunto e que o outro responda com atenção e
afeto. Quando uma pessoa diz «Vê-se mesmo que só pensas em ti» ou «O trabalho é
mais importante do que eu», até pode achar que está a mostrar os seus
sentimentos, mas NÃO está. Está a permitir que a aflição tome conta de si e assuma
a forma de acusações que invariavelmente serão sentidas como injustas. Pelo
contrário, se uma pessoa disser «Quando tu escolhes ir trabalhar, eu sinto-me
inseguro(a)/ assustado(a)/ muito preocupado(a). Podemos falar sobre isto?»,
abre espaço para que o(a) companheiro(a) possa responder de forma compassiva e
mostre os seus próprios sentimentos.
O mesmo é válido para a
comunicação a propósito do sexo e do desejo sexual. Se escolhermos falar
abertamente sobre aquilo que sentimos, é mais provável que evitemos a escalada
de críticas e agressividade.
Dizer «Quando tu dizes que não
tens vontade eu sinto-me rejeitado(a)», é muito diferente de dizer «É sempre a
mesma coisa» ou, pior, «Não acho normal».
A importância do toque durante a quarentena
Independentemente de o desejo
sexual sofrer alterações, há algo que está ao alcance de todos e que produz
milagres na sensação de segurança e de conexão: os gestos de afeto. Quando os
dois membros do casal têm mesmo de ficar fechados em casa durante muito tempo, há
mais oportunidades para trocar gestos de afeto. Um abraço demorado ou um
beijo mais prolongado não nos roubam tempo ao trabalho ou aos afazeres
domésticos e trazem a certeza de sermos amados. É muito menos provável que
alguém se sinta rejeitado ou abandonado se houver gestos de afeto com
regularidade.
Em tempos de isolamento, os
casais podem aproveitar todos os tempos “livres” para fazer coisas que, na
azáfama normal dos dias passam para segundo plano: criar o ritual de verem
séries de televisão agarradinhos, fazer uma pausa a meio do dia para tomar um
café ou um chá, organizar, a dois, álbuns de fotografias ou simplesmente
organizar a casa. Há um efeito calmante associado ao ato de “destralhar” e
organizar armários e gavetas e isso também pode ser feito a dois. Pelo meio, é
natural que surjam alguns momentos de tensão, mas se ambos se esforçarem e o
toque estiver presente, é mais provável que rapidamente os ultrapassem,
porventura com algumas gargalhadas pelo meio.
Gratidão: uma ferramenta poderosa
Há muito tempo que me refiro às
práticas de gratidão como ferramentas terapêuticas poderosíssimas. Pararmos
diariamente para prestar atenção (e escrever sobre) coisas positivas que nos
rodeiam é ainda mais importante em tempos difíceis. É um grande desafio, sim. Não
é fácil manter o otimismo ou a gratidão quando nos sentimos esmagados por
notícias que nos dão conta de centenas de mortos por dia ou da escassez dos
recursos dos diversos serviços de saúde. Também não proponho que nos
alheemos da realidade e que finjamos que está tudo bem. Refiro-me, isso sim, à
possibilidade de dosearmos o acesso à informação e darmos o nosso melhor para
que os gestos de bondade e afeto sejam valorizados na medida certa e alimentem
a nossa esperança.
Criar o ritual de aceder às
informações uma ou duas vezes por dia – idealmente de manhã – pode não ser
fácil, sobretudo porque sabemos que há constantemente novidades a sair. Mas
dificilmente vamos sentir-nos melhor se formos bombardeados com informações
tantas vezes contraditórias ou, pelo menos, difíceis de compreender.
A par deste doseamento, quando os
membros do casal escolhem parar diariamente para escrever sobre as coisas mais
positivas de cada dia, estão a trabalhar no sentido de controlar a ansiedade e
manter o otimismo. Esta estratégia pode revelar-se crucial para manter a união
conjugal. E a que podemos prestar atenção quando o mundo parece estar a
desmoronar? Já todos ouvimos e vimos cenários comoventes de dezenas de
vizinhos reunidos nas varandas a cantar ou relatos de pessoas que decidiram
voluntariar-se para ajudar os vizinhos mais velhos ou mais vulneráveis,
disponibilizando-se para ir à farmácia ou ao supermercado.
Quando paramos para escrever
sobre os acontecimentos que contribuíram para melhorar o nosso dia, também é
mais provável que nos lembremos de escrever coisas como «Sinto-me grato(a) pelo
facto de o(a) meu(minha) companheiro(a) ter tido paciência para a minha
explosão de hoje» ou «Sinto-me grato(a) pelos abraços que ele(a) me deu».
Felizmente, a ciência tem-nos mostrado que este gesto tão simples de nos
obrigarmos a escrever sobre aquilo por que nos sentimos gratos é imensamente
terapêutico – ajuda a controlar a ansiedade, a desenvolver a empatia e a
compaixão, a estreitar laços e a desenvolver a motivação para escolhas que promovam
a nossa saúde.
Distanciamento não é desconexão
Começámos este período de
isolamento cheios de energia e de vontade de nos mantermos ligados aos
familiares e amigos através da tecnologia. Mais do que nunca, as videochamadas
e aplicações como o Houseparty vieram trazer a possibilidade de gerirmos
as saudades das pessoas que amamos. Mas, ao fim de quase duas semanas, começo a
ouvir relatos de cansaço e de desmotivação. Algumas pessoas assumem que já não
têm tanta paciência para as mensagens de Whatsapp ou que nem sempre têm
vontade de participar numa videochamada de grupo. As reuniões à distância que,
no princípio, deram origem a gargalhadas terapêuticas, deram lugar, nalguns
casos, a alguma tristeza e cansaço. É natural. Estamos a viver algo
absolutamente novo e estamos a adaptar-nos da melhor maneira que conseguimos.
As novidades dos primeiros dias deixaram de ser novidade e precisamos de gerir
as emoções e os pensamentos que vêm com este isolamento. Para alguns, é
sobretudo a preocupação com o futuro profissional e financeiro, o medo de não
haver dinheiro para fazer face às despesas essenciais. Para outros, são as
saudades de todas as coisas que contribuem para o bem-estar – os abraços à família
de origem, os almoços de domingo, as saídas com amigos, o exercício físico ao
ar livre. Pelo meio, há sonhos que sabemos que podem ter de ser adiados, há
projetos que não sabemos se irão para a frente e isso é desmotivante.
Temos o direito de sentir medo
– por nós e pelas pessoas que amamos -, temos o direito de sentir tristeza,
raiva ou confusão. E não há por que camuflar estas emoções ou fazermo-nos
de mais fortes do que efetivamente somos. Pelo contrário, quando escolhemos
mostrar-nos de forma autêntica – à pessoa que está ao nosso lado e aos
familiares e amigos que estão do outro lado do ecrã, é mais provável que
recebamos o amparo de que precisamos para nos reerguermos. Isto é especialmente
impactante para a relação de casal. A vulnerabilidade é muitas vezes vista como
fraqueza, mas a verdade é que quando nos vulnerabilizamos, quando mostramos
aquilo que estamos a sentir, acabamos por conseguir gerir os nossos sentimentos
de forma muito mais equilibrada. Reconhecer aquilo que estamos a sentir e
assumir aquilo de que precisamos é um sinal de amor próprio, de respeito por
nós mesmos.
Quando os membros do casal se
expõem e se vulnerabilizam e quando escolhem responder com atenção e afeto a
estes apelos, sentem-se invariavelmente mais unidos, mais seguros e mais
otimistas.
Em tempos de isolamento, somos todos malabaristas
Quase todos os casais com filhos
pequenos têm sido confrontados com o desafio de, de um momento para o outro,
passarem a ter de ser pais, educadores de infância, professores, explicadores,
empregados domésticos, profissionais em teletrabalho e, claro, parceiros
românticos. Não é fácil manter a calma, o foco, a organização e a paciência
quando há muito mais solicitações do que aquelas a que estávamos habituados ou
quando simplesmente constatamos que, no final do dia, produzimos muito menos do
que seria desejável.
O caminho mais fácil é
permitirmos que as emoções tomem conta de nós e desatarmos a descarregar no
adulto que está mais perto: o(a) nosso(a) companheiro(a). No meio do
malabarismo que é gerir todos os papéis em simultâneo, há alturas em que
ficamos com a sensação de que a pessoa que está ao nosso lado está a ser egoísta
ou simplesmente não valoriza os nossos sentimentos e as nossas necessidades.
Quando ele(a) não faz aquilo que pedimos, quando responde de forma mais acesa
ou parece privilegiar a carreira em detrimento da ajuda familiar, é tentador
fazer acusações.
Quando um dos membros do casal se
fecha numa divisão da casa para reunir com o chefe por videoconferência e o
outro não consegue impedir que a criança de cinco anos invada a reunião a
gritar por causa do brinquedo desaparecido, pode parecer que houve negligência.
Na prática, ambos estão sob muita pressão e praticamente não têm
momentos de descompressão.
Uma das ferramentas que nos podem
ajudar a manter o foco é a compaixão. Lembrarmo-nos de que este é, efetivamente,
um período muito duro para todos é essencial para que olhemos para a pessoa que
está ao nosso lado reconhecendo que também ela está apenas a dar o seu melhor.
Por outro lado, é fundamental que
haja genuína camaradagem e que cada um possa ter tempo para fazer aquilo que
o(a) ajude a descomprimir. Uma hora de exercício físico ou a jogar Playstation enquanto
o outro “segura as pontas” pode ser revigorante.
Neste momento, há muita coisa
para gerir e demasiada incerteza em relação ao futuro, mas há algo de que não
nos podemos esquecer: esta pandemia vai passar. É fundamental que olhemos para
o futuro e que façamos hoje as escolhas que nos permitam estarmos junto das
pessoas que amamos quando tudo isto passar. Este período é um teste às
relações, sim, e é fundamental que nos lembremos de cuidar de nós e das nossas
relações hoje, colocando em prática os primeiros socorros psicológicos e
pedindo ajuda se necessário.