Quais são as características de uma família disfuncional? E quais são as respostas que devemos procurar quando damos conta de que crescemos numa família disfuncional?
Ouço muitas vezes no meu trabalho
com adultos a frase “Cresci numa família disfuncional”. Na maior parte das
vezes, a expressão refere-se aos problemas familiares que deixaram marcas
profundas, mas nem sempre se trata de famílias com as características de uma
família disfuncional.
Quais são as características de uma família disfuncional?
#1: ABUSOS
Nem todas as famílias
disfuncionais são caracterizadas pela existência de abusos físicos ou sexuais,
mas este é um sinal indiscutível de disfuncionalidade. Para além de todas as
consequências que se prolongam pela vida fora, aquilo que observamos nestas
famílias é a “normalização” dos abusos.
Já todos ouvimos frases como «Eu
apanhei do meu pai/ da minha mãe e estou aqui», como se a sobrevivência
fosse sinal de saúde mental.
As pessoas que dão afeto e atenção são as mesmas que agridem, às vezes de forma brutal.
Em muitos destes casos, é só na
idade adulta que a pessoa se dá conta de que foi alvo de comportamentos
abusivos – às vezes essa perceção no contexto de uma relação amorosa, noutros
casos surge em terapia.
#2: VIOLÊNCIA EMOCIONAL
A violência emocional pode
assumir muitas formas. É por isso que às vezes pode ser difícil reconhecer um
comportamento como uma forma de abuso emocional. Ser-se emocionalmente violento
não é apenas gritar e insultar. De resto, a maior parte dos exemplos de
violência emocional a que acedo no meu trabalho com famílias não incluem
quaisquer insultos.
São exemplos de violência
emocional (e da disfuncionalidade de uma família):
Ignorar as necessidades (físicas
ou emocionais dos filhos);
Retirar o afeto à criança quando
não vai ao encontro da vontade do adulto;
Hipercrítica (humilhações);
Fazer ameaças;
#3: AMOR CONDICIONAL
Hoje em dia estamos muito
familiarizados com o conceito de amor incondicional. A maior parte dos pais e
mães que tenho conhecido dão o seu melhor para que os filhos saibam que são
merecedores de amor independentemente das suas opções. Mas há muitos adultos
que cresceram num ambiente familiar tão exigente que a sensação era a de que
estavam sistematicamente “aquém” das expectativas.
Nas famílias disfuncionais é
frequente os adultos mostrarem desilusão a propósito das escolhas dos filhos –
não porque eles tenham cometido erros, mas porque contrariaram a vontade dos
pais.
Quando os filhos não fazem
aquilo que os pais gostariam que eles fizessem, o amor é “retirado”. Na
prática, continua a haver comunicação, mas é mais “seca” e desprovida de afeto.
Estas crianças transformam-se
frequentemente em “people pleasers”, isto é, em adultos preocupados em agradar
a toda a gente, negligenciando os próprios sentimentos e as próprias
necessidades.
#4: INEXISTÊNCIA DE FRONTEIRAS
Nas famílias disfuncionais a
invasão da privacidade dos filhos é uma constante. O espaço físico (quarto) é
invadido, mesmo quando os filhos já são adolescentes ou adultos e a
correspondência é frequentemente violada. Mais do que isso: os pais podem sentir-se
no direito de tomar decisões em nome dos filhos, mesmo quando estes já têm
autonomia para tomar as próprias decisões.
A inexistência de fronteiras
também faz com que os pais partilhem demasiadas informações com os filhos,
transformando-os em confidentes desde muito cedo. Aquilo que acontece é que os
filhos são confrontados com assuntos que só deveriam dizer respeito aos pais e
sentem-se muitas vezes obrigados a proteger os progenitores (ou um deles), a
tomar decisões e a fazer o que estiver ao seu alcance para ajudar a resolver os
problemas.
# 5: INEXISTÊNCIA DE COESÃO E
INTIMIDADE
Por estranho que pareça, nas
famílias disfuncionais não há muita intimidade. Há normalmente um grande
emaranhamento, resultante da inexistência de fronteiras. Toda a gente se
mete na vida de toda a gente, o que pode ser confundido com coesão familiar.
Claro que também pode haver genuína preocupação, mas, de uma maneira geral, os
membros da família sentem-se pouco confortáveis com a ideia de partilharem os
seus sentimentos mais íntimos uns com os outros. Na prática, não há a devida valorização
dos sentimentos ou das necessidades de cada um, não há o devido respeito e, em
função disso, torna-se mais difícil falar abertamente e criar verdadeira intimidade.
#6: TRIANGULAÇÃO
Nas famílias saudáveis os
assuntos são resolvidos de-um-para-um. Cada pessoa sente-se confortável para
manifestar aquilo que sente, para se queixar e até para discutir. Nas famílias disfuncionais
é frequente a existência de triangulações. Na prática, quando uma pessoa se zanga
com outro membro da família, opta por falar com um terceiro membro em vez de
resolver o assunto diretamente. Por exemplo, se a mãe se zangar com o pai, é
capaz de ir falar mal do pai junto do filho e até é capaz de o pressionar no
sentido de enviar recados. Este padrão relacional tende a eternizar-se e os
filhos rapidamente aprendem a fazer o mesmo.
Quando existem estas alianças
perversas, há, pelo menos, duas consequências negativas: por um lado, os
problemas dificilmente são resolvidos e, por outro, a confiança nos membros da
família é muito diminuta.
#7: COMPORTAMENTOS ADITIVOS
Nas famílias disfuncionais encontramos
frequentemente o consumo abusivo de álcool e drogas e o vício do jogo. Estes
comportamentos trazem muita instabilidade para toda a família. Os filhos
crescem quase sempre com muita incerteza e transformam-se quase sempre em
crianças (e mais tarde adultos) hipervigilantes e ansiosos. É como se nunca
soubessem com o que podem contar, como se nunca tivessem a certeza de que, ao
chegar a casa, encontrarão um ambiente tranquilo ou o caos.
Nestas famílias é comum haver
muitos gritos, muita violência.
Que respostas existem para as famílias disfuncionais?
A família em que crescemos
oferece-nos os primeiros conceitos de normalidade. É junto dos nossos pais e
familiares mais próximos que interiorizamos, pelo exemplo, o que é normal e o
que não é normal. Mas à medida que crescemos e, sobretudo, à medida que
construímos outras relações afetivas, vamo-nos dando conta dos erros que os
nossos pais e outros cuidadores cometeram.
As pessoas que cresceram numa
família disfuncional muitas vezes só se apercebem dessa disfuncionalidade na
idade adulta. Às vezes, essa perceção surge na sequência dos problemas
existentes na relação conjugal. Noutros casos, surge na sequência de um pedido
de ajuda em resposta a uma perturbação ansiosa ou depressiva.
A terapia é invariavelmente um porto seguro
através do qual o adulto que cresceu numa família disfuncional
tem oportunidade de identificar e tratar as feridas
emocionais que ficaram desse período.
De uma maneira geral, esse
processo implica a recuperação da própria voz.
Por outro lado, as marcas que
ficam afetam quase sempre o amor-próprio, pelo que há um trabalho a ser feito
para que a pessoa interiorize que é merecedora de amor e possa fazer escolhas
que permitam construir relações emocionalmente saudáveis.
Claro que este trabalho
terapêutico também depende da capacidade de reconhecer que é preciso algum afastamento
em relação aos comportamentos tóxicos. Na prática, isto pode ser muito difícil
porque se trata de adultos que passaram a vida inteira a desvalorizar as
próprias necessidades e a sentir a obrigação de agradar aos outros. Reconhecer
que têm o direito de se afastar destes comportamentos não é sempre fácil, mas é
essencial.
A recuperação também implica o
reconhecimento dos padrões de relacionamento disfuncionais e a capacidade de
romper com esses padrões, também para evitar que eles se reproduzam na família
que se quer construir. É natural que, pelo meio, haja muitos sentimentos de
culpa, que haja medo e incerteza, mas, no final, compensa muito.
Todo este processo depende do reconhecimento de que vamos sempre a tempo de melhorar a nossa vida, MAS só podemos mudar o nosso comportamento. Por muito que custe aceitar, não podemos mudar as pessoas de quem gostamos. Podemos, isso sim, relacionar-nos com elas de formas mais saudáveis e protetoras do nosso bem-estar.